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O pensamento sem fronteiras de Albert O.
Hirschman
RESUMO: Economista reconhecido por seus estudos
sobre desenvolvimento (1915-2012) tem biografia lançada nos EUA. Livro narra
vida marcada pela resistência ao nazismo e ressalta disposição para o trabalho
de campo e para a integração de disciplinas, que pode ter lhe custado o Nobel
do qual muitos o julgavam merecedor.
Se uma montadora fabrica carros ruins e caros, os
consumidores deixarão de comprá-los, e a empresa irá à falência ou se
reinventará. Mas e se o serviço de ônibus de uma cidade for ruim e caro?
No primeiro caso, um mercado saudável e competitivo
dá conta de selecionar o que funciona e o que não. No segundo, apresentam-se
três alternativas: sair, se conformar ou verbalizar.
"Sair" significa deixar de usar ônibus:
comprar um carro, uma bicicleta. Mas nem todos podem sair.
"Conformar-se" implica aguentar ônibus ruins e caros.
"Verbalizar", finalmente, significa protestar, manifestar-se e exigir
dos poderes públicos um preço mais razoável e um serviço mais eficiente.
"Exit, Voice and Loyalty" (1970), o livro
mais famoso de Albert Otto Hirschman, trata justamente dessa questão.
Nos anos 1980, Hirschman foi uma aposta para o
Nobel de Economia. Ele nunca levou o prêmio, o que é considerado uma injustiça
por alguns de seus colegas --entre eles Amartya Sen (que recebeu o
reconhecimento da Academia Sueca em 1998). Talvez a falta do prêmio explique
por que os obituários não tenham sido pródigos quando ele morreu, no fim de
2012.
Dois fatos pesaram para que Hirschman não levasse o
Nobel: em primeiro lugar, ele transitava entre dois campos de estudo, a
sociologia e a economia. Além disso, não é possível indicar uma teoria única ou
uma disciplina que ele tenha fundado. Sua obra se caracterizou pela diversidade
dos temas.
Recentemente, porém, um livro restaurou a
importância de Hirschman: o catatau intitulado "Worldly Philosopher"
[Princeton University Press, 751 págs., US$ 22,98; disponível em e-book por R$
88,83]. A biografia, assinada pelo historiador econômico Jeremy Adelman, foi
publicada nos EUA no ano passado, e foi motivo de extensas análises na mídia
mais refinada dos Estados Unidos.
O "worldly" do título --mundano, no sentido de ligado às coisas
palpáveis, materiais não é gratuito. As ideias e a vida do biografado foram
fortemente influenciadas pelos grandes marcos históricos do século passado.
INTRANSIGÊNCIA Entre os assuntos contemplados na
produção de Hirschman está a falta de diálogo entre economistas. Seu penúltimo
livro, de 1991, saiu nos EUA com o título de "A Retórica da Reação" a
contragosto do autor, que preferia "A Retórica da Intransigência" (no
Brasil, o volume, publicado pela Companhia das Letras, foi chamado dessa
forma). Era um ensaio sobre como e por que conservadores e liberais fazem
teorias para seus próprios grupos, com a finalidade de reafirmar suas certezas.
Assim como o mote de "Exit, Voice and
Loyalty", o tema ganhou atualidade --é só navegar pela internet brasileira
para ler grupos se acusando de "keynesianos de galinheiro" ou
"cabeças de planilha".
Mas a ideia mais conhecida de Hirschman não é
nenhuma destas. Trata-se de uma metáfora: a da mão escondida.
O economista apontava para o conjunto de
consequências imprevisíveis de uma ação do governo. Por exemplo: um programa de
transferência de renda tem como propósito tirar pessoas da situação de pobreza
extrema. A mão escondida é o efeito colateral: o comércio ganha força, a
economia gira, novos negócios são abertos, mais impostos são arrecadados.
Trata-se, claro, de um aceno à mão invisível do
mercado --aquela mesma que leva à falência uma montadora de carros ruins e
caros.
Em meio à grande variedade de temas e objetos de
estudo, porém, quando se fala no nome de Hirschman, pensa-se ainda nos
desenvolvimentistas. Não é um despropósito: ele foi um dos primeiros acadêmicos
de universidade norte-americana a se debruçar sobre o tema dos países pobres,
justamente na época em que o assunto ganhava temperatura, nos anos 1950.
O economista foi muito influente na América Latina.
Ajudou a fundar a Cepal e também o Cebrap, no Brasil, além de "think
tanks" nos mesmos moldes em outros países da região.
Hirschman era a favor da distribuição de renda e de
um Estado de bem-estar social, mas era contra a revolução com que, nos anos
1950 e 1960, boa parte da esquerda latino-americana sonhava. Para ele, reformar
o Estado lentamente, com avanços e retrocessos, era o melhor caminho.
O estudo do desenvolvimento não foi uma escolha
totalmente espontânea: ele viveu na Colômbia durante os anos 1950 porque não
conseguia emprego nos EUA.
Hirschman não sabia, mas esteve na lista negra do
senador Joseph McCarthy. Visto como uma ameaça ao capitalismo, não conseguiu
trabalhar em órgãos governamentais ou universidades do país que adotou como
nação. Mas não era a primeira vez que ele era perseguido pelos donos do poder.
NOVO COMEÇO O economista nasceu em uma família de
judeus de Berlim em 1915.
Durante a juventude, integrou um grupo de
comunistas da capital alemã chamado Neu Beginnen (novo começo). Foi dessa parte
de sua história que os anticomunistas norteamericanos tiraram suas suspeitas,
desconsiderando o fato de que Hirschman havia abandonado o comunismo ainda adolescente.
Em 1933, seu pai, um cirurgião, morreu. No mesmo
ano, Hitler assumiu o poder, e a Alemanha passou da República de Weimar para o
Terceiro Reich. O jovem fugiu do país, ao qual só voltaria depois de mais de 40
anos.
Fixou-se em Paris, onde começou a estudar
administração. De lá, alistou-se para lutar na Guerra Civil Espanhola, na qual
foi ferido. Não há detalhes sobre o episódio, que ele não comentava nem mesmo
com sua mulher Sarah --eles foram casados por sete décadas.
Desiludido com as brigas e sabotagens entre grupos
de legalistas na Espanha (os stalinistas chegaram a executar membros do Poum -
Partido Operário de Unificação Marxista), mudou-se em 1935 para Londres,
ingressando na London School of Economics.
Passou ainda pela Itália para estar com a irmã,
Eva, e um grupo de intelectuais independentes, como o filósofo antifascista
Eugenio Colorni (1909-44), que seria para ele uma grande influência.
Segundo a biografia de Adelman, Hirschman e Colorni
tinham quase uma obsessão para "provar que Hamlet estava errado".
O personagem da peça fica tão paralisado pela
dúvida que não consegue agir. Portanto, se autoquestionar, colocar as próprias
certezas em xeque nos deixa em um estado de catatonia. "Provar que Hamlet
estava errado" era provar que, na verdade, é bom ter dúvidas, elas fazem
com que as posições sejam revistas.
Porém, quando se trata de um governo, e não de uma
pessoa, o ideal é que ele tenha como revisitar suas posições, mas sem que essas
voltas o imobilizem.
Hoje a ideia é mais nítida do que quando foi
formulada, em plena Segunda Guerra, quando nações eram governadas por dogmas
que determinavam como poderosos e povo deveriam agir.
Da Itália, voltou à França. Lá trabalhou em uma
rede que tinha como objetivo salvar europeus perseguidos pelo nazismo,
ajudando-os a sair da Europa. Conseguiram levar às Américas um número estimado
entre 2.000 e 4.000 de judeus e antinazistas –entre eles, gente como o pintor
Marc Chagall e a filósofa Hannah Arendt.
Hirschman tinha várias funções nesse círculo:
falsificava documentos, ajudava perseguidos a cruzar fronteiras, auxiliava com
disfarces. A certa altura da Segunda Guerra, o próprio Hirschman acabou fazendo
uso da rede e foi para os EUA, onde voltou a estudar e se alistou no Exército.
Assim, antes do fim do conflito, estava de volta à
Europa, dessa vez com os soldados americanos. Ao alistar-se, ele tinha noção de
seu potencial para ser uma cabeça nos serviços de inteligência, mas acabou
trabalhando como tradutor.
Fluente em alemão, francês, italiano e inglês, ele
foi o tradutor do primeiro grande julgamento de um nazista de alta patente,
Anton Dostler, que foi executado: coube a Hirschman comunicar ao condenado que
seria morto por um pelotão de fuzilamento.
De volta aos EUA, esteve no grupo responsável pelo
Plano Marshall, que reergueu a Europa durante o pós-Guerra. Mas sua vida
profissional não deslanchou, pois ele passou a topar com as dificuldades do
macarthismo.
Foi quando, em 1952, chegou um convite para ir à
Colômbia, a fim de trabalhar como consultor. Ao aceitar, Hirschman deparou com
um país que tentava sair de uma situação plenamente agrária e de atraso para
tentar alcançar os que já estavam plenamente industrializados. Ele trabalhou
por lá durante os anos de guerra civil conhecidos como "La Violencia"
(1948-1958), com conflitos que amontoaram corpos no campo.
Desse momento em diante, a produção intelectual do
estudioso esteve ligada aos países em desenvolvimento, especialmente os da
América Latina.
Hirschman entendeu bem a chamada "síndrome de
vira-latas" e a necessidade que os latino-americanos temos de buscar aval
de intelectuais do mundo desenvolvido para reconhecer nossos próprios méritos.
Ele não se sentia confortável na posição do "gringo sabido" que viria
de um país rico para ensinar como fazer as coisas.
Já livre do macarthismo, ele voltou aos EUA e,
mesmo sem gostar de dar aulas, teve empregos nas mais prestigiadas
universidades de lá, como Harvard e Princeton.
No fim dos anos 1950 e durante os 1960, começou a
circular pela América Latina -- colaborou com Salvador Allende, com o
economista argentino Raúl Prebisch e também com alguns brasileiros, como Celso
Furtado e um então jovem sociólogo chamado Fernando Henrique Cardoso, que ficou
embevecido ao ouvir do "gringo sabido" que os dois pensavam de forma
parecida.
A amizade entre o futuro presidente e Hirschman
durou décadas --o economista foi um dos poucos presentes no almoço de pré-posse
de FHC, no dia 1º de janeiro de 1995. Há um ano, o ex-presidente publicou na
"Ilustríssima" um artigo relembrando alguns momentos com o amigo, que
morrera poucos meses antes, após um longo tempo agonizando sem memória ou
consciência.
José Serra também conviveu com o economista, como
assistente na Universidade de Princeton, como registra o livro de Jeremy
Adelman. Hirschman chegou a acionar sua rede de contatos no governo
norte-americano para ajudar Serra a se desembaraçar de militares que o detinham
momentaneamente no aeroporto. Segundo Adelman, o exgovernador nunca soube que
Hirschman havia se movimentado para ajudá-lo.
Apesar de não ser mais tão influente quanto no
passado, o pensamento de Hirschman deixou uma herança notável --ainda que
talvez indireta-- na atuação de alguns economistas atuais. É o que se percebe,
por exemplo, nos trabalhos da francesa Esther Duflo e seu laboratório de
estudos sobre pobreza, que, num estilo semelhante ao de Hirschman, combina
experiência em campo com teoria.
Estudiosos como Duflo seguem um traço peculiar de
Hirschman, cuja experiência de campo, visitando países em desenvolvimento,
difere bastante dos testes que os economistas de desenvolvimento fazem hoje.
Hirschman, o livro reitera, teve uma trajetória
única --duas guerras, fuga do país de origem e, depois, do continente,
perseguição do macarthismo e a vida na América Latina. A combinação dessas
mudanças com uma inquietude intelectual fez dele um pensador de múltiplos temas --se não levou o Nobel,
conseguiu verbalizar ideias sem que a dúvida o paralisasse.
Questões
1. O que significa
“verbalizar”?
2. Hirschman era a favor de
quais ideias socioeconômicas?
3. Por que Hirschman, ainda
jovem, fugiu da Alemanha?
4. Hirschman fixou-se em
Paris, posteriormente passando por Londres, Itália e voltou à França. Qual
papel desempenhou na sua volta à França? Explique esse trabalho desenvolvido
por ele.
5. O texto menciona um
nazista, Anton Dostler, por qual motivo ele fora executado? Em sua opinião, a
pena de morte deve ser implantada no Brasil? Justifique sua resposta.
6. Qual foi o objetivo do
Plano Marshall?
7. Por que Hirschman fora
perseguido pelo “macarthismo”, a origem dessa expressão está relacionada ao
senador, à época, Joseph McCarthy, mencionado no texto.
8. Explique a crítica que
Hirschman fez em relação aos latinos-americanos.
9. Ao longo do texto
podemos imaginar várias situações. Represente uma delas através de um desenho.